

Claudia Andujar: a luta Yanomami faz um levantamento da arte e do ativismo da fotógrafa brasileira desde os anos 1970 ao lado de trabalhos de artistas e cineastas Yanomami. Por mais de cinco décadas, Andujar dedicou sua vida a fotografar e defender os Yanomami, um dos maiores povos indígenas do Brasil. Em um momento em que esse território está mais ameaçado do que nunca pela mineração ilegal de ouro, desmatamento e desrespeito do governo com sua responsabilidade constitucional, e como a Covid-19 continua a varrer o globo, esta exposição também traz como foco a crise humanitária e ambiental exacerbada pela pandemia.
Nascida na Suíça, em 1931, e criada na Transilvânia em uma judia e protestante família, Andujar fugiu da Europa após a Segunda Guerra Mundial, na qual sua família paterna morreu no Holocausto. Em 1955, Andujar se estabeleceu no Brasil e embarcou na carreira de fotojornalista.

Os Yanomami costumam queimar seus yano [casa coletiva] quando migram, querem fugir de uma epidemia ou quando morre um líder importante. Catrimani, 1972-76. © Claudia Andujar
A fotografia permitiu que Andujar se conectasse com seu país de adoção e, com o tempo, ela construiu um portfólio que se concentrava nas comunidades vulneráveis e marginalizadas do país. Em 1971, a serviço de uma revista, Andujar conheceu os Yanomami, um povo ameríndio que vivia no norte da floresta amazônica. Durante aqueles primeiros anos, Andujar desenvolveu uma relação significativa com esse povo indígena e realizou uma obra altamente original que buscava expressar as complexidades da cultura Yanomami.
Ao longo da década de 1970, a ditadura militar do Brasil começou a colonizar ativamente a região e explorar seus recursos naturais. A chegada de milhares de trabalhadores e garimpeiros à região levou à fratura de comunidades Yanomami e à disseminação de doenças mortais. Em 1977, Andujar foi expulsa da região pelo governo militar por denunciar publicamente a terrível situação enfrentada pelos povos indígenas. Ao retornar a São Paulo, Andujar gradualmente se envolveu mais na ação política direta e começou a usar sua fotografia para apoiar iniciativas ativistas. Com um grupo de ativistas, ela organizou campanhas, protestos e programas de saúde e também viajou pelo mundo com o xamã Yanomami e o porta-voz Davi Kopenawa para forçar o governo brasileiro a reconhecer o direito à terra dos Yanomami.

Antônio Korihana thëri, jovem sob efeito do pó alucinógeno yãkoana, Catrimani, 1972-1976. © Claudia Andujar
1971-1977: A ATRAÇÃO DE CATRIMANI
No início de 1971, a serviço da revista brasileira Realidade, Claudia Andujar tirou as primeiras fotos dos Yanomami. A edição especial dedicada à Amazônia examinou o impacto do programa econômico do regime militar na região. Frustrada com o ritmo acelerado do jornalismo, Andujar conseguiu uma bolsa da Fundação John Simon Guggenheim, que lhe permitiu deixar a revista e embarcar em um projeto de longo prazo. No final daquele ano, ela retornou ao território Yanomami, aventurando-se ainda mais para o interior até a bacia do rio Catrimani, uma região isolada no Norte do Brasil. Entre 1971 e 1977, Andujar viajou várias vezes para Catrimani, permanecendo por longos períodos. Ao longo desses primeiros anos, Andujar começou a fotografar seu cotidiano e atividades, acompanhando os Yanomami em expedições de caça e forrageamento na floresta. À medida que se aproximava do povo Yanomami e de sua cultura, também passou a experimentar diversas técnicas fotográficas, aplicando vaselina nas lentes da câmera, adotando filme infravermelho e, posteriormente, refotografando suas próprias imagens com filtros coloridos.

Susi Korihana thëri nadando, Catrimani, 1972-1974. © Claudia Andujar.
1971-1977: NA INTIMIDADE DA FAMÍLIA
Usando a missão católica na região Catrimani como sua base, Andujar visitou diferentes aldeias. Com o tempo, ela também começou a fotografar rotinas familiares no yano, o espaço comum que forma o coração de cada comunidade. Em 1972, Andujar contraiu malária, o que a obrigou a passar o ano seguinte em São Paulo. De volta a casa, ela deu cursos de fotografia e estudou novas formas de representar graficamente em pouca luz até que ela pudesse voltar para Catrimani. As fotos tiradas no yano apresentam o cotidiano dos Yanomami com maior intimidade e buscam transmitir uma representação mais complexa de seu mundo xamânico. Raios de luz iluminam o telhado de palha do yano. Um jovem se reclina envolto em fumaça. Um telhado feito de folhas de palmeira brilha como o céu estrelado. As cenas do dia a dia são representadas de maneiras que transcendem a realidade. Andujar se esforça para tornar visível um mundo invisível, como se a fotografia pudesse oferecer um reflexo metafísico da visão de mundo Yanomami.

Casa coletiva perto da missão católica no rio Catrimani, Roraima, 1976. © Claudia Andujar
1972-1976: RITO E INVENÇÃO
Uma das séries de fotos mais significativas de Andujar retrata um evento central na vida social Yanomami chamado reahu, que é tanto uma reunião intercomunitária quanto um rito fúnebre. Cantos, danças, rituais e diálogos fazem parte do rito, que pode durar vários dias. Durante o reahu, os xamãs inalam um pó alucinógeno chamado yãkoana para contatar e nutrir os espíritos xapiri. Nessas fotografias, Andujar desenvolveu diferentes técnicas fotográficas para representar diferentes momentos da cerimônia. Ela sobrepôs várias cenas no mesmo quadro, usa baixas velocidades do obturador para desfocar os elementos em movimento e balança a câmera para criar faixas de luz cintilantes. Em vez de documentar diretamente o reahu, Andujar procurou representar as coletivas conexões e os laços espirituais que marcam a festa e a combinação de movimento, som e visão que caracteriza a experiência xamânica.

Desabamento do céu / O fim do mundo – da série Sonhos Yanomami, 2002. © Claudia Andujar
1972-1976: EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE
Nesta série de retratos em preto e branco, Claudia Andujar fotografou crianças e adultos usando a luz natural que penetra em suas casas coletivas. Ela enquadra bem suas imagens, empregando um claro-escuro dramático que cria uma sensação de intimidade e chama a atenção para a individualidade de cada pessoa. Para cada retrato, Andujar usou um rolo inteiro de filme, trabalhando lentamente para capturar com sensibilidade seus temas. Vistos como um álbum de família, esses retratos celebram a amizade entre Andujar e aqueles que ela estava fotografando e ajudaram a fortalecer os laços emocionais entre eles. Tradicionalmente, os Yanomami relutam em ser fotografados por temerem que, se um vestígio deles permanecer no mundo físico após sua morte, seu espírito não ascenderá totalmente ao céu. Apesar de suas crenças, os Yanomami concordaram com a preservação e exibição da obra de Andujar, pois isso ajuda a conscientizar sua cultura e a ajudar na campanha contra a destruição de seu povo e terras.

Jovem numa tradicional rede de algodão, planta que as mulheres aprendem a cultivar e fiar, Catrimani, 1974. Foto © Claudia Andujar
1978-HOJE
Outra parte da exposição explora como Claudia Andujar deixou de lado seu projeto fotográfico pessoal em favor de uma ação política coletiva e urgente.
Em 1971, o governo brasileiro lançou um programa com o objetivo de explorar o que chamou de “continente verde vazio”, abrindo-o para a extração de madeira, pecuária, mineração e outras indústrias. Em 1973, milhares migraram para a região de Catrimani para trabalhar na construção da Perimetral Norte, uma rodovia que cruzaria o continente de leste a oeste. Essa migração em massa e o desenvolvimento desenfreado trouxeram doenças, conflitos e desorganização social para os Yanomami, resultando em milhares de mortes e degradação ambiental. A situação se agravou na década de 1980, quando suas terras foram invadidas por mais de 40 mil garimpeiros. Mais de 15% da população morreu de malária e outras doenças infecciosas.
A expulsão de Claudia Andujar do território Yanomami, em 1977, marcou uma virada. Forçada a ficar em São Paulo, ela se juntou a um crescente movimento em defesa dos direitos dos povos indígenas. Em 1978, com o missionário Carlo Zacquini e o antropólogo Bruce Albert, entre outros, ela cofundou a Comissão para a Criação do Parque Yanomami (CCPY), ONG que teria um papel central na luta pelos direitos territoriais e culturais dos Yanomami. Por mais de 14 anos, a CCPY e o porta-voz Yanomami Davi Kopenawa encabeçaram uma luta incessante pela demarcação do território Yanomami, que foi finalmente concedida em 1992.
Hoje, a retomada da invasão de garimpeiros, aliada ao desrespeito do governo brasileiro aos direitos indígenas e à presença da Covid-19 representam novas ameaças ao povo Yanomami.

Perto do rio Catrimani, 1974. Foto © Claudia Andujar
1980-1987: VACINAÇÃO E SAÚDE
Em 1980, a CCPY lançou um programa de vacinação urgente como parte de um projeto maior de saúde para inocular os Yanomami contra doenças infecciosas fatais como tuberculose, sarampo, tosse forte e gripe. Com o apoio de organizações nacionais e internacionais, Andujar e dois médicos percorreram as terras Yanomami imunizando pessoas e relatando a desastrosa situação de saúde.
Tradicionalmente, os Yanomami não têm nomes fixos, mas múltiplos nomes que mudam ao longo de suas vidas. Mais recentemente, muitos também adotaram nomes portugueses. Para facilitar a identificação, os médicos desenvolveram um sistema em que cada indivíduo era fotografado com uma etiqueta no pescoço indicando o número do prontuário.
Em 2009, para trazer uma atenção renovada ao povo Yanomami, Andujar revisitou esses retratos para criar uma série chamada Marcados.

Série Marcados. Foto © Claudia Andujar

Série Marcados. Foto © Claudia Andujar
1989/2018: GENOCÍDIO DOS YANOMAMI: MORTE DO BRASIL
Em 1989, o governo brasileiro tentou dividir o território Yanomami em 19 microreservas separadas. A iniciativa foi imposta com total desrespeito ao modo de vida Yanomami, que tem como base o caçador-coletor e o horticulturalismo. O objetivo era despojá-los de suas terras para estimular a colonização agrícola e a extração mineira. Líderes indígenas e ONGs se opuseram fortemente à política violenta do governo.
Para protestar contra essa proposta, a CCPY organizou a exposição Genocídio dos Yanomami: a morte do Brasil em São Paulo. Para esta instalação audiovisual, Andujar fotografou novamente 300 imagens de seu arquivo com um filtro dourado e as projetou em várias telas. A instalação apresenta um mundo progressivamente devastado pela violência da colonização ocidental.
Em 1992, após a campanha liderada por Claudia Andujar, Davi Kopenawa, Carlo Zacquini e Bruce Albert, entre outros, e apoiada globalmente pela Survival International, o governo brasileiro concordou em demarcar legalmente o território Yanomami como um pedaço de terra contínuo. Reconhecido às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), esse território ainda está ameaçado pela inação do governo brasileiro em relação aos estimados 20 mil garimpeiros ilegais que atuam no território e sua tolerância ao desmatamento. Trabalhando a serviço dos Yanomami, o extenso arquivo de Claudia Andujar continua a lhes dar voz no cenário internacional, mobilizando opiniões contra as violações de seus direitos territoriais e culturais.

Genocídio do Yanomami: morte do Brasil, 1989. © Claudia Andujar.
Quem não conhece os Yanomami, vai conhecê-los por meio dessas imagens. Meu povo está neles. Você nunca os visitou, mas eles estão presentes aqui. É importante para mim e para vocês, seus filhos e filhas, jovens, crianças, aprender a ver e respeitar o meu povo Yanomami do Brasil que vive nesta terra há muitos anos.
Davi Kopenawa (Porta-voz e xamã Yanomami)

Jovem mulher em uma rede, casa coletiva da família Korihana thëri, Catrimani, Roraima, 1972–76. © Claudia Andujar.
Thyago Nogueira é curador chefe de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles – IMS.
CLAUDIA ANDUJAR:
THE YANOMAMI STRUGGLE • BARBICAN
• LONDRES • 17/6 A 29/8/2021

