
Matéria com base em: https://dasartes.com.br/materias/tarcisio-veloso/
INSTAURANDO ABISMOS E PONTES COM O
ESPECTADOR, O JOVEM ARTISTA BAIANO TARCÍSIO
VELOSO FUNDA SUA POÉTICA NA TRADIÇÃO DA
PINTURA E DOS RETRATOS
Tarcísio Veloso é um contador de histórias. Suas histórias, porém, não estão completamente à vista. Ao contrário, o que o artista nos dá são histórias ocultas. Retratadas em sua maioria em um fundo neutro, vazio, suas personas estão normalmente deslocadas de qualquer contexto ou ambientação que possa dar pistas ao espectador. Estão ali, encarando-nos frente ao mais profundo mistério. Ao olhar as personas que Tarcísio pinta, podemos apenas imaginar o que se passa com elas. E imaginar, aqui, é criar reflexos. Sem referenciais para as pinturas que nos encaram com olhos marejados, semblantes angustiados e lágrimas que escorrem delicadamente, acabamos por ver a nós mesmos. Sem uma definição do que as leva a chorar, projetamos nelas as nossas próprias angústias, o nosso próprio choro represado.

Nascido em Correntina, interior da Bahia, Tarcísio Veloso é autodidata e trabalha com óleo sobre tela desde 2015, quando fez o primeiro trabalho de restauração de uma obra sacra deteriorada pelo tempo. No ano seguinte, já percebia o chamado para o ofício que a arte lhe fazia. Formado em Direito e morador de Goiânia, Tarcísio abraçou a vocação para as artes, tratando-a com paixão e, ao mesmo tempo, certa fixação: quando estava prestes a abrir a primeira individual, em 2018, chegava a pintar mais de dez horas por dia. Com profunda admiração pelo realismo e pelo pós-impressionismo, a prática foi lhe dando seu próprio método, sua própria técnica.

Tendo uma passagem pelo teatro, Tarcísio faz com suas obras o que, em artes cênicas, é chamado de “quebrar a quarta parede”. Seus personagens rompem com o véu invisível que os coloca dentro de um universo próprio e, ainda que cercados pelos limites da tela, atravessam qualquer barreira que possa existir entre eles e o espectador. Ao olharem diretamente para seu interlocutor, os retratados de Tarcísio criam uma conexão direta com quem os vê. Aí está também o perigo de suas obras. Como diria Friedrich Nietzsche, “se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. Quando as figuras de Tarcísio nos encaram através da tela sem qualquer tipo de pudor, retiram os muros, deixando apenas o abismo diante de nós. Atravessam-nos o íntimo e, de repente, nos vemos em seus olhares, vemos o precipício, e passamos a ser o precipício.

Ainda que precipícios, suas obras são também pontes. Pontes principalmente entre tempos. Seus retratos evocam o passado: há ares de figuras renascentistas nas flores que dançam por suas telas, que dão a elas um movimento latente contrastando com suas figuras inertes. Há algo de Boticcelli em suas composições. Mas se as flores podem ecoar o nascimento, o amor, elas também são contraste e podem refletir a morte, a melancolia interna enquanto tudo à volta é beleza. Ora, e por que não haveria beleza também na melancolia? O passado também nos encontra em seus meninos e meninas vestidos com roupas de outrora, um passado que traz a nostalgia das fantasias de criança (literal e metaforicamente), um passado que subverte a tradição, retira um ou outro elemento do lugar com que a visão já se acostumou.

Da tradição clássica dos retratos de séculos passados ao culto a si mesmo das redes sociais, o que se busca é a perfeição. Já o que Tarcísio nos dá é o oposto: a fragilidade, a fraqueza humana. Se sua estética de elevados graus técnico e simbólico flerta com o que já passou, não podemos, no entanto, deixar de pensar no fato de que vivemos mais um grande período histórico do culto da imagem perfeita. Selfies, filtros, procedimentos estéticos: recorremos incessantemente à busca da perfeição e, quanto mais a perseguimos, mais ela nos escapa. Como um Narciso que se afoga em sua própria imagem, será essa a hora de contar a história por meio dos perdedores? Será essa a hora de romper os filtros de fakes sorrisos instantâneos e artificiais (até isso criamos na busca pela felicidade latente das redes!) e desnudar o choro?

Foi exatamente a vaidade que foi associada às obras de Tarcisio em sua mais recente exposição: o artista compõe a coletiva Estados de Espírito, da Galeria Café, em São Paulo. Com curadoria da Dasartes, a mostra, que também recebe obras dos artistas Juliana Frug, Heloisa F. Pajtak, Verena Frye e Dhyogo Oliveira, reflete sobre o estar no mundo e questiona: “Tudo bem?”. As pinturas de Tarcísio parecem não trazer uma resposta exata para essa pergunta. Na verdade, quando nos colocamos diante de suas imagens/espelhos e tentamos lhes questionar o que se passa por trás de sua bidimensionalidade, quando tentamos descobrir se está tudo bem com aquelas figuras, a única resposta que vem também reside nos mitos. Passeando entre os jovens Tarcísio/Narciso e a ninfa Eco, ao mergulhar profundamente nessas telas, o que elas nos dão é uma repetição de nossa própria pergunta: Está tudo bem? Está tudo bem? Tudo bem? Bem?…

Leandro Fazolla é ator, historiador e
crítico de arte. Doutorando em Artes
Cênicas. Mestre em Arte e Cultura
Contemporânea, na linha de pesquisa
de História, Teoria e Crítica de Arte.
Diretor Geral do Instituto Cultural Cerne.

ESTADOS DE ESPÍRITO • GALERIA CAFÉ
• SÃO PAULO • 30/5 A 30/9/2022

