AINDA VIDA
Largamente experimentada pela história da arte europeia, as pinturas do gênero natureza-morta frequentemente apontavam a finitude do tempo. Que os períodos acabam. Vanitas é um de seus principais temas: data do final do século XVI, persiste por todo o século XVII – o seu período áureo – e adentra o início do século XVIII. Em Vanitas, caveira e ossadas figuram como elementos central da composição em que são representadas ao lado de outros objetos. Da beleza (espelhos de mão, joias, e outros adornos ligados ao feminino); da riqueza (moedas de ouro e prata e itens valiosos em geral); da sabedoria (livros, máquinas e instrumentos científicos); das artes (quadros, esculturas, máscaras e instrumentos musicais); e dos jogos de azar (os dados e as cartas de baralho de jogo). As flores murchando e os frutos apodrecendo eram motivos que tanto simbolizavam a brevidade da vida como a certeza da morte. Completando o conjunto de simbolismos da temática temos os motivos artísticos que representavam a passagem do tempo. As ampulhetas. Os cronômetros. As velas apagando-se. Os cachimbos ardidos. As taças de vinho derramadas. As bolhas de sabão – esferas flutuantes fugazes e frágeis, fascinantes.

Em inglês, o gênero natureza-morta é traduzido como still life. Se na língua portuguesa esses trabalhos apontam para a morte, é bem verdade que sua tradução na língua inglesa aponta para o que resiste: ainda a vida.

A série de esculturas que tomam partido da forma de lâmpadas industriais é exercitada há vários anos pelo professor Marcos Duarte, de nossa oficina de escultura. Muito embora não seja justo ler este trabalho como uma natureza-morta, esta imagem foi uma das que mais partilhamos por este ano. Mirá-la como um sinal da brevidade da vida, da certeza da morte e da instabilidade do futuro são possibilidades.

Um grande fundo branco, uma lâmpada sobre a superfície: em vez da transparência do vidro e da luminosidade da eletricidade, vemos uma forma sugerida no carvão. Imaginar outros mundos foi um convite à imaginação coletiva: enxergar na matéria a possibilidade de outras formas se apresentarem. Observar esta forma é, sobretudo, apostar para aquilo que ela sugere.

CUIDADO
É evidente para todos aqueles viventes que estamos em franco enrijecimento das condições materiais de vida. O esgotamento de um modelo econômico baseado numa ideia insustentável de crescimento e expansão, produção e consumo; o aniquilamento da potência de vida do planeta por meio do extrativismo de nossos recursos materiais; a consequente proximidade do esgotamento das condições de vida da humanidade. Não avizinha-se o fim do mundo, mas a nossa possibilidade de existência.
No espectro da cultura popular e do entretenimento, não soa exagero perceber que nosso desejo de utopia parece ter encontrado suas alternativas mais realistas em narrativas de distopias. Nosso futuro é desde agora construído pela cultura do espetáculo e do entretenimento com alegorias de zumbis e mortos vivos. A morte já não se projeta em nosso futuro, no fim dos tempos, mas entra no tempo presente, ilumina por quais relações de poder somos compostos. Quem sabe, ao reconhecer a necropolítica de nossos tempos, podemos denunciar e combater a morte que se apresenta como realidade. Não à toa, irrompe a palavra “cuidado” nas pautas dos movimentos sociais e no pensamento crítico da contemporaneidade. O tempo da pós-modernidade, aquele que partilhamos hoje, promete um presente que nos condena. Não a uma promessa de futuro, mas ao tempo que nos resta.

Durante o ano de 2021, marcado pela crise pandêmica e por uma política cravejada pela ideia de morte, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage usou sua voz pública para convocar artistas e não artistas; alunos, visitantes ou professores; brasileiros e estrangeiros a imaginar outros mundos. Mortes massivas, mortes administradas. Mortes provocadas de milhares de pessoas, com as quais morrem – ou tentam fazer morrer – sujeitos, famílias, história, futuro e humanidade. Frente à catástrofe humana, às ruínas desiguais de nossa sociedade, quanto pode a arte

ESTRATÉGIAS PARA CIRCULAR O MUNDO
Criar é usar nossa pulsão vital. Afirmar esta energia criadora certamente não é a solução para morte. Mas criar não precisa ser a inserção de objetos de alto valor de troca em um mercado em franca especulação. Criar pode ser a administração de nossa energia vital concentrada, pode trazer a consciência de que fazemos, construímos e geramos o mundo em que vivemos. Que nosso tempo é socialmente e coletivamente fabricado. Que o mundo é formado e deformado cotidianamente por nossas mãos e máquinas. Quiçá criar possa ser uma maneira de salvar a vida – pois para a morte, não é. [Às vésperas da publicação deste texto, o Brasil contabiliza mais de 617 mil mortes provocadas pela pandemia do Coronavirus).

Nesta mostra final, resultado de um ano em que exercitamos distâncias e presenças em meio físico e digital, habitar a Escola foi sobretudo um exercício de imaginação. Sublinhou-se nesta experiência que fazer Escola está ligado ao território e ao espaço, mas também à relação entre indivíduos e seus desejos de imaginar e realizar juntos. Os trabalhos aqui apresentados não foram selecionados por uma comissão específica a partir de critérios de qualidade ou inovação – palavras frágeis, largamente experimentadas em nosso cotidiano. Cremos na livre circulação do pensamento artístico como possibilidade geradora de processos formativos – mais do que na divulgação de resultados bem sucedidos.

IMAGENS CURVAS
Assim como as bolhas de sabão, as imagens nessa plataforma mostram seus ângulos e quinas arredondadas, sugerindo formas em plena expansão. Tal recurso, coincidentemente, foi usado na expografia da mostra Hábito–Habitante, pensada pela arquiteta Isabel Xavier, aberta no dia Primeiro de Maio deste ano aqui na Escola, no espaço físico e em uma plataforma digital, como esta. As Cavalariças tiveram seus ângulos arredondados para jogar com a ilusão e a finitude: o fundo infinito. Tal gesto buscou acompanhar a proposta da curadoria: uma mostra que investigou como o cotidiano dos espaços molda, reconfigura, transforma, domestica, adestra, manipula, dá forma a seus habitantes.  Ao pintar as paredes da mostra de verde chroma key, objetivamos, mesmo que por meio de dispositivos digitais, criar uma experiência à distância. Apontar para a explosão dos limites do espaço, mesmo que metafórica. Sugerir que podemos mais.

SER PEQUENO, SONHAR GIGANTE
Imaginar outros mundos, tarefa gigantesca, foi o que elegemos fazer com as crianças nas Jornadas de Outubro deste ano. Nas Jornadas, em alto e bom som, exercitamos o ar em nossos pulmões para gritar nossa coragem de construir um mundo mais justo e solidário. É preciso imaginar outros mundos, outros contornos e afetos para os seres vivos e o planeta, estabelecendo novas formas de conexão – lembraram-nos as crianças. Aqui, nesta plataforma digital, os trabalhos apresentados, tal qual na mostra online do ano passado, valem-se da recombinação constante e da possibilidade fantástica que qualquer imagem guarda em si: propor novas relações e com elas outras possibilidades.

ENTRE O SUJEITO E O OBJETO
Exemplo possível, a lâmpada em carvão aponta para o mundo da criação humana, da manufatura, das ideias. Realizada, no entanto, em combustível fóssil, matéria reconhecidamente natural e ligada a uma longa linha de extrativismos. Uma natureza que não é selvagem, exótica externa. Mas uma massa reconfigurada cotidianamente pela presença de humanos no mundo. O espectro contemporâneo está largamente ligado às tentativas de fazer desaparecer a divisão entre natureza e cultura, uma matriz da segregação que se perpetua há milênios. Capitalismo, colonialidade, patriarcado, escravização, racismo, segregação social, exploração da terra, subsolo e animais – todos são baseados em distinções de status entre sujeito e objeto. Tal neurose cultural (Hospedando Lélia Gonzalez, p. 51) tem no racismo um de seus maiores sintomas.

ADIAR O FIM DO MUNDO
Neste ano, fomos convocados a mirar novamente para o que guardamos em nosso espaço. Acontecimento triste e simbólico, real e violento, o incêndio da Oca Kupixawa que o Parque Lage guarda relembrou-nos das palavras de Ailton Krenak. Em meio à morte como ordem do dia, criar insubordinadamente, com outras éticas, talvez seja uma das grandiosas ideias que podem adiar o fim do mundo.

A visão moderna foi caracterizada por um futuro que prometia transformar o presente por meio da previsão e do planejamento humanos, com a ajuda de inteligências artificiais, robotizadas, não-humanas. Com o esgotamento da modernidade, no entanto, as instituições e operações do contemporâneo oferecem novas configurações de sequenciamento no tempo e história. Teses como a pós-história, o presentismo ou o cancelamento do futuro diagnosticam nossa condição pós-moderna como a de uma contemporaneidade sem progresso. É impossível encararmos um futuro sem reconhecer uma realidade assombrada pelos fantasmas do passado. Se o presente nos convoca a questionar quanto podemos por meio da arte e da vida, que o futuro seja uma possibilidade de encarar, com coragem e responsabilidade, o que urge ser deformado.

Ulisses Carrilho
Curador
EAV Parque Lage

Sonia Wysard
Brasil, São Paulo, 1952
Vive e trabalha no Rio de Janeiro
Sonia Wysard é natural de São Paulo, transferindo-se para o Rio de Janeiro no ano de 1958. Gradua-se em Ciências Biológicas, em 1981, pela Universidade Gama Filho, lecionando por 25 anos em escolas públicas. No ano de 2002, já aposentada, gradua-se em Design de Interiores, pela Universidade Estácio de Sá. Em 2007, inicia sua formação artística na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Faz sua primeira individual em 2013. Participa de várias exposições coletivas desde então.

O interesse pela natureza e pelo espaço, presente em seu percurso de vida, se confluem então no seu fazer artístico em matura idade, onde a percepção virtual e real, e a escolha por uma determinada questão pictórica abstrata, criam a imersão necessária para sua pesquisa e assim também à fruição do espectador.

Sonia busca desafiar o limite do visível em suas pinturas, sugerindo profundidades, com luzes e sombras que emergem de dentro da própria pintura. Claro e escuro que se relacionam dentro de um jogo que em cada trabalho, seja por sobreposição, transparência ou contraste, criam uma multiplicidade de espaços na superfície bidimensional. Mesmo com um mínimo de gestos ou elementos, e beirando o esvanecer-se nas escolhas monocromáticas de suas séries, a produção de Sonia Wysard mantém-se extremamente corajosa e forte, na busca de seus limites mais sutis e tênues.