
“Mãos cheias de teoria”
Foi me dada a incumbência de escrever sobre um dos artistas da 34ª Bienal de São Paulo como os outros colunistas do blog, mas como aqui meu intuito é relacionar filosofia e arte, não me pareceu justo chegar perto de um trabalho artístico com as mãos cheias de teoria.
A excelência e magnitude do trabalho do artista Antonio Dias é uma outra inibição. Minha intuição sempre me disse que ao vê-lo nas bienais havia um duplo gesto em jogo: um, a certeza da qualidade do artista como propositor nos diversos jogos da arte e outra, a receptividade ímpar em relação às camadas curatoriais depositadas pelos curadores.

Pergunto-me o que realmente importa? Dissertar, relacionar, recortar a linguagem estética de tal forma que nos favoreça sua presença ou enquadrá-lo no cercado curatorial necessário à exposição? Normalmente o caráter narrativo advindo da literatura parece ser a saída mais próxima, mesmo as infindáveis narrativas textuais que forjam críticos e historiadores no intuito de alcançar a plasticidade do trabalho de arte parece disfarçar o jogo que o trabalho de arte propõe.
Proponho ver a obra escolhida pela bienal desatrelada de qualquer explicação, qualquer narrativa ou citação. Vá lá (mesmo que virtualmente) e sinta (mesmo que através da pele da técnica do computador ou celular) o que há. E nesse encontro com a obra deixe aparecer o que tanto nos interessa. Deixe os curadores em seu lugar de propositores sem fim, deixem assentar por sob o pó do tempo as explicações que foram sendo catalogadas em numeráveis arquivos, infindáveis maneiras de reter o gesto e o gosto que cada trabalho alcança (a todos nós) na vida.
Há sim um outro lugar para visitar e ele começa inexoravelmente no contato com a obra de arte, que a partir de um outro referencial teórico, tornou-se trabalho de arte. Portanto, ao enunciar o que se vê já estamos levando a tradição no lombo. Sejamos então “burros como pintores” para ver com olhos livres! Se a lógica aqui me guia, melhor derrubá-la! Nem mesmo a lógica é um instrumento correto para apanhar a obra.
Aline Reis | 20 abril 2021


SOBRE ANTÔNIO DIAS
Ainda muito jovem, o paraibano Antonio Dias (1944, Campina Grande, PB) destacou-se na cena artística carioca da década de 1960. Sua pintura construiu um repertório de figurações evocativas, que assimilavam criticamente fundamentos da arte concreta e os carregavam de formas voluptuosas pintadas de vermelho, ossos e silhuetas em preto e branco, ícones de explosões e armas. Chegando a extrapolar o plano da pintura com os signos de suas narrativas abertas, Dias foi reconhecido por Hélio Oiticica como referência imprescindível para o movimento da Nova Objetividade Brasileira.
No final de 1966, tendo recebido um prêmio da Bienal de Paris, Dias enfrentou dificuldades em conseguir documentos de viagem e foi para a Europa com um passaporte duvidoso. Isso, junto ao agravamento da perseguição política promovida pelo regime militar brasileiro, motivou que sua estada em exílio se estendesse por tempo indeterminado. Tendo testemunhado os acontecimentos de maio de 1968 na França, Dias mudou-se para a Itália, igualmente conturbada por agitações políticas. Foi nesse período que os signos explícitos que caracterizavam sua produção foram reduzidos e condensados até que ele chegasse a uma obra radicalmente sintética: telas que partiam de uma massa gráfica, em muitos casos um monocromo negro, sobre os quais um fino requadro e algumas palavras pintadas em branco evocavam cenas e ideias. Essa produção consolidou a posição de Dias em um campo de crítica à própria arte como linguagem, sistema ideológico e área de investigação.
Muitas vezes percebidas como resultado da adesão de Antonio Dias ao campo da arte conceitual – caracterizado pela metalinguagem e pelo distanciamento da representação – as pinturas textuais que ele produziu a partir de 1968 podem também ser lidas como um luto estético pelo acirramento de políticas repressivas no Brasil ou, como ele as definiu em uma anotação, exercícios de uma “arte negativa para um país negativo”. Nessas obras, cada conjunto de palavras forma um enunciado aberto, associado a elementos gráficos que operam como diagramas a serem traduzidos livremente pelo observador. A oportunidade de ver muitas dessas obras juntas deixa perceber reiterações entre as ideias que elas evocam: há o viajante e a vida secreta; a praça do terror e o dia como prisioneiro; o espelho preto, a memória, a miragem e a biografia incompleta.

