

Laboratório de Atmosferas
Habitamos um mundo ordenado; vemos isso no design dos produtos, na centralidade dos mobiliários, tudo feito para o mediano comportamento dos corpos e seus desdobramentos no nosso modo de pensar. O mundo tal como se abre às nossas percepções já traz em sua abertura um modo de ser, o que evidencia que a tradição ocidental unificou num pensamento de totalidade como uma medida vinculante.
Ao mesmo tempo que a aparente ordem se apresenta, sabemos que a natureza com a qual idealizamos sofre uma transformação considerável. Não nos passa despercebido que as mudanças climáticas, a poluição dos rios e mares, são intervenções nocivas no meio ambiente. O mundo natural sempre nos foi hostil. A filosofia e a ciência fizeram com que o conhecimento pudesse de alguma forma criar padrões de captura tanto da ordem quanto da causalidade, o que nos proporcionou tentar refrear o domínio das intempéries.
Para nos abrigar dos fenômenos naturais, construímos uma arquitetura íntima na qual são climatizados não só nossos modos de ser, a cultura e a arte, como as construções arquitetônicas e metafísicas, que convergiram para um vocabulário comum, na celebração do encontro com o outro.

O aparecimento do rosto como o reconhecimento facial foi uma conquista dos hominídeos ao longo da história, propiciando o surgimento da esfera íntima. Os rostos pintados tão fragmentados e sumidos na paisagem da proporção/ desproporção da artista Adriana Nataloni nos dão a impressão contrária. Mais do que nunca a discussão sobre a totalidade e a parcialidade alcança tamanho destaque em nosso tempo histórico. Será que só podemos nos relacionar com os poucos vestígios que nos sobraram? Há na lida fragmentária da forma (e sua edição) um modo muito próprio de lidar com tudo o mais? Os restos inorgânicos jogados nas ruas estariam desvinculados da dimensão global do debate que solicitam?
Descartados em volumes impressionantes e invisibilizados como um problema global, alcançam uma dimensão citadina quando apanhados para algum fim que seja possível. Tanto os artistas quanto os famintos buscam as caçambas de lixo. Os primeiros veem possíveis esculturas, daí a coleta de restos de coisas da indústria não estar somente ligada ao regime pop de suas embalagens, mas a própria ação de reincorporá-las já se constitui como trabalhos de arte. É claro que a artista se insere numa longa tradição da história da arte que vem desde Duchamp até a esteira do Conceitualismo. Não hierarquizar os materiais, mas ao manipulá-los como objetos de arte, não necessariamente utilizando-os na direção de uma postura social (reciclagem), faz com que Adriana os envolva no invólucro circundante do mundo.
É nessa abertura entre pensamento de arte, visada de mundo e manipulação da vida que se encontra a força do trabalho de arte de Adriana Nataloni, que está no Espaço Cultural Municipal Sergio Porto, até dia 27 de agosto.
ALINE REIS | 15 setembro 2023
