JEANE TERRA exposição “Escombros”

Relíquia Gaiola, 2022. Série Cápsulas de Memórias. Foto: © Jeane Terra.

Para a mostra Escombros, Peles, Resíduos (2021), com curadoria de Agnaldo Farias, mostrei os trabalhos resultantes da pesquisa no Pontal do Atafona – em São João da Barra, na região Norte Fluminense –, que vem sendo lentamente engolido pelo mar, implacável, destruindo casas, calçadas e ruas.

Jeane Terra

Depois, quis me voltar para o sertão, e conhecer as cidades inundadas para a construção da barragem Sobradinho e da usina Luiz Gonzaga, em 1970, quando aquela região do sertão virou “mar”. Pelo menos 100 mil pessoas tiveram que deixar sua terra natal e se deslocaram para as novas demarcações urbanas, levando apenas seus pertences e, em alguns casos, partes das construções de suas casas. Aproveitei uma baixa do rio São Francisco, no final de 2021, e fiz duas grandes viagens pra percorrer as cidades de Sobradinho, Remanso, Casa Nova, Pilão Arcado e Sento Sé, na Bahia.

Fiquei atravessada pela ideia de ruptura. A perda é muito violenta. Cheguei a chorar muitas vezes ouvindo os relatos. Algumas pessoas enlouqueceram, outras não acreditaram e foram retiradas abruptamente. Foi durante a ditadura militar, e ninguém podia contestar. Além da perda, a maneira como foi feita, inacreditável, impactou-me muito. Transformar essa perda, essa dor, visualmente, foi um grande desafio para mim. É uma paisagem linda, um sertão lindo, um rio maravilhoso, que tem coisas maravilhosas. A Barragem teve dados positivos, mas a forma como foi feita é uma ruptura para a vida daquelas pessoas. Muito forte e muito doído. Ao pisar naquele chão que foi um dia cidade, veio-me uma responsabilidade imensa de devolver esses trabalhos para eles de forma muito cuidadosa e respeitosa.

Cápsulas de memória

Relíquia de Santo Antônio, 2022. Série Cápsulas de Memórias. Fotos: © Jeane Terra

“Feitas em vidro soprado, moldado artesanalmente em alta temperatura, algumas em formato de gotas d’água e outras com curvas, essas esculturas abrigam as monotipias feitas a partir de fotografias das paisagens que registrei. Essas monotipias translúcidas aplicadas no vidro revelam imagens de um sertão que grita e clama por seu não esquecimento. São como cápsulas que guardam histórias para o futuro.

Nesse primeiro trabalho, coloco a imagem da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, do século 19, e o marco maior da fé da população de Remanso. Utilizo uma imagem antiga, do registro feito no exato momento em que a água invadia a cidade e inundava tudo. A escultura contém água do rio São Francisco. Na escultura em forma de gota, faço uma monotipia do registro da margem do rio São Francisco em Remanso. Nela, uma parte é seca, e, na outra, se avista o grandioso rio.”

Jeane Terra

Esculturas em vidro e barro

Majestosa, 2022. Série Esculturas em vidro e barro. Fotos: © Jeane Terra.

Marejar, 2022. Série Esculturas em vidro e barro. Fotos: © Jeane Terra

A presença do vidro surgiu da necessidade de transferir pequenas doses dessa água do rio São Francisco para o espaço expositivo, levando uma paisagem viva carregada de memórias submersas. As esculturas de vidro estão acomodadas sobre outras esculturas de barro, que moldei a partir de fragmentos de escombros que recolhi nas cidades que, com a seca do rio, ficam parcialmente fora d’agua. Algumas delas contêm água do rio que eu trouxe cuidadosamente para o ateliê. Nesse trabalho, utilizo duas esculturas idênticas feitas a partir de um escombro retirado do fundo do rio São Francisco nas proximidades da antiga Sobradinho. Eles aqui abraçam um vidro soprado que acolhe a água do rio. São como guardiões dessa memória, pilares que sustentam um rio de memórias flutuantes.”

Jeane Terra

Pintura seca ou pele de tinta

Virtuoso, 2022. Fotos: © Jeane Terra

Desenvolvi, em 2017, o que chamo de “pintura seca” ou “pele de tinta” – um aglutinado com tintas, pigmentos e outros materiais – que se assemelha a um couro ou a uma pele. Depois de riscar a tela de canvas com uma trama quadriculada, aplico uma foto feita por mim em um programa que codifica essa imagem em uma receita de ponto cruz. Recorto então pequenos quadrados de 1 x 1 cm dessa “pele de tinta” e remonto a imagem na tela. É “um pixel analógico”, e cada trabalho desses pode demorar até quatro meses para ser finalizado. Quis levar essa antiga técnica de bordado para o campo da pintura.

Nessa pintura seca, reconstruo, por meio de mínimos fragmentos de tinta, a imagem de um vestígio da cidade de Pilão Arcado. A cidade ficou ilhada, mas não foi toda encoberta pelas águas, como se previu na época. A casa despida de função abriga somente a luz e as memórias dos que ali viveram. Ela é para mim um grito de sobrevivência dessa cidade dilacerada e apagada.”

Jeane Terra

Monotipias em peles de tinta

Santuário do Sertão, 2022. Série Monotipias em peles de tinta. Foto: © Jeane Terra
Santuário do Sertão, 2022. Série Monotipias em peles de tinta. Foto: © Jeane Terra

“Seguindo com a pesquisa da pele de tinta, quis transformá-la em suporte, em tela para outras intervenções. Então trilhei um longo caminho para alcançar a consistência necessária para criar peles em grande formato – uma mistura de tinta, aglutinante e pó de mármore, que garante firmeza e maleabilidade ao suporte –, para fazer monotipias nesse material. Foi dificultoso encontrar as condições adequadas para realizar a transferência de imagem. Eu queria tatuar, inscrever essa memória na pele de tinta, e o resultado se assemelha a pergaminhos antigos, que o tempo desgastou. Na transferência para a pele, a imagem se fragmenta, dilacera-se, como a memória.

Aqui, temos a imagem da Igreja de Santo Antônio, do século 18, em sua majestosa edificação. Estive dentro dela e pude sentir a força e a persistência de uma cidade que clama para não ser esquecida. A igreja é hoje uma sentinela que vela a margem do rio em Pilão Arcado.

Jeane Terra

Pau a Pique

Fábula do Sertão, 2022. Série Pau a Pique Fotos: © Jeane Terra.

Percorrendo o sertão, deparei-me com uma paisagem deslumbrante, e me senti fortemente afetada por ela, em especial pelas casas construídas em pau a pique em meio à imensidão daquele sertão lindo e castigado. A visão remeteu às construções que via no interior de Minas desde a infância, também de pau a pique. Isso me trouxe essa memória afetiva vinculada a uma técnica construtiva antiga, muito utilizada no período colonial principalmente nas zonas rurais, e que, das técnicas em arquitetura de terra, a mais utilizada, principalmente por dispensar materiais industrializados e ser de baixo custo. Essa arquitetura ligou minha memória mineira imediatamente à Bahia e, a partir daí, quis transportá-la para as obras que compõem o corpo da exposição. Recolhi no sertão alguns galhos da paisagem e trouxe para o ateliê, juntando a outros para construir a estrutura de madeira trançada com cipós coletados da cidade de Minas de onde veio minha família. Tive que adaptar a massa de barro misturando novos materiais para criar uma estrutura que pudesse ser deslocada e permanecesse forte e resistente. Nessa obra, faço uma monotipia seca de uma imagem do que restou da velha Pilão Arcado. Ela é como uma fábula do sertão. Um sonho arrancado dos moradores e hoje ilhado em um rio de memórias. ”

Jeane Terra

A exposição aconteceu em: JEANE TERRA: TERRITÓRIOS, RUPTURAS E SUAS MEMÓRIAS • CENTRO CULTURAL DOS CORREIOS •
RIO DE JANEIRO • 6/10 A 19/11/2022